Como uma crônica desse cenário Rubem Fonseca escreve o livro de contos O Cobrador, que através de narrativas curtas, porém intrigantes, abordam as temáticas em voga da época e retratam a situação latente à sociedade. A degradação social está presente em quase todos os contos, mas nos deparamos também com o abandono, a humilhação e a crítica às instituições em geral, como no conto Onze de Maio.
Através das descrições de um dos velhinhos do asilo Onze de Maio conhecemos a rotina pela qual ele e outros idosos são submetidos, que inclui, principalmente, a tentativa de aliená-los do mundo exterior. Os maus tratos são práticas constantes desde a alimentação, que é completamente básica, pão, café e sopa rala, até a falta de liberdade de transitarem pelo lugar para terem contato com outros idosos. A palavra de ordem é assistir televisão e ficar o máximo de tempo possível dentro de seus quartos, que de tão pequenos e sem conforto são descritos como celas pelo narrador.
Qualquer enfermidade é motivo para medicação, sendo ela qual for, mas que não vise necessariamente à cura, e sim a minimização do trabalho para os coordenadores do lugar. Mas parece que apenas o narrador desse conto consegue perceber essa situação de exclusão e humilhação em que ele e os outros idosos vivem, assim torna-se sua missão mostrar a realidade para seus companheiros. O que culmina no episódio final de violência dos idosos contra os que o oprimiam. O conto pode ser visto como uma metáfora do conformismo que Roberto Schwarz percebe nos anos 80 em Nacional por subtração.
O intitulado Mandrake recebeu destaque e se tornou mais conhecido por ter sido adaptado para a televisão. Em seu enredo, notamos a presença do modelo de literatura norte-americano: um crime ocorre (“uma jovem havia aparecido morta na Barra, dentro do próprio carro”) e o investigador (Mandrake), que também é o narrador dessa história, se envolve no caso. Quem o procura para desvendar quem foi o autor do crime são personagens da classe alta da sociedade, que mostram o contraste com os possíveis suspeitos sempre de uma classe mais baixa.
O vício será presença constante no decorrer do conto, tanto no freqüente consumo do vinho português do investigador quanto no consumo de drogas de outros dois personagens da trama. A traição é outro assunto retratado por Rubem Fonseca, em que a base da “confusão” que levou ao crime foi justamente a traição. Nesse caso ainda mais chocante por mostrar o envolvimento de uma sobrinha com seu tio (Cavalcante Méier), esposo de uma mulher doente e pai de Eva, que sabia de seu relacionamento com sua prima e consentia com essa situação.
Os envolvimentos sexuais polêmicos também são tratados no conto Pierrô da Caverna, que aborda a pedofilia e o abuso sexual. Porém a naturalidade com que esses temas aparecem no conto surpreende o leitor. Diante desses exemplos, percebemos que se relacionamentos fora dos padrões chocavam a sociedade e os próprios personagens na literatura de Nelson Rodrigues, com Rubem Fonseca, nos anos 80, há uma naturalidade nessas ações. Não há choque da sociedade retratada na ficção, tampouco dos personagens envolvidos na trama, no máximo o choque de um leitor mais conservador. Mesmo esse, caso se indignasse, acabaria recorrendo a valores morais que eram uma das bandeiras da ditadura, tão desgastada na época.
Patrícia Ruzene
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